Carta dos bispos ao Povo de Deus na Amazônia

Na celebração final do 10. Encontro da Igreja na Amazônia, realizada
em Santarém (PA), nesta sexta-feira, 6 de julho, o cardeal dom Claudio
Hummes, presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia, e os bispos
dos regionais da CNBB que abrangem a região divulgaram uma Carta ao
Povo de Deus. O encontro também contou com a participação de dom
Leonardo Steiner, secretário geral da Conferência.

Leia a Carta:

CARTA AO POVO DE DEUS

Irmãs e irmãos caríssimos em Cristo Jesus,

Povo de Deus na Amazônia,

“Não tenha medo, cotinue a falar e não se cale, pois eu estou contigo“ (At 18,9)

“Cristo aponta para a Amazônia“ lembrava o Papa Paulo VI aos bispos da
Amazônia por ocasião de seu encontro em Santarém, de 24 a 30 de maio
de 1972, marco indelével na história da Igreja desta grande região
brasileira, habitada por povos de culturas e tradições tão
diferenciadas do outro Brasil.

Expressamos nossa gratidão ao Deus da vida porque nestes 40 anos, não
obstante nossas fragilidades, nossa Igreja tem anunciado Jesus Cristo
ressuscitado, caminho, verdade e vida e tem marcado presença junto ao
povo sofrido, sendo muitas vezes a voz dos povos indígenas,
ribeirinhos, quilombolas, seringueiros e migrantes, nas periferias e
em novos ambientes do centros urbanos animando as comunidades na
reivindicação do respeito pela sua história e religiosidade. É também
a vida destes povos, seu modo de viver, sua simplicidade, seu
protagonismo, sua fé que nos encantam! Não faltou o testemunho de
entrega da própria vida até o derramamento de sangue. Este testemunho
nos anima, nos encoraja e nos fortalece. São também protagonistas
religiosos e religiosas, pastorais, movimentos e serviços que tem sido
uma força viva e atuante na realidade das nossas comunidades.

Constatamos avanços no campo social e político, com novos organismos
de participação, conselhos de políticas públicas, participação nas
campanhas por leis mais justas, aumento da consciência e engajamento
na questão ecológica. No campo econômico, cresce o consumo e o poder
aquisitvo embora nem sempre acompanhado do aumento da qualidade de
vida. A vida na Amazônia continua sofrida.

Há séculos os povos da Amazônia gemem e choram sob o peso de um modelo
de desenvolvimento que os oprime e exclui do “banquete da vida, para o
qual todos os homens e mulheres são igualmente convidados por Deus“
(SRS 39). A Igreja ouve os gritos, às vezes desesperados, e se
identifica com o seu clamor, conhece o seu sofrimento. Mais ainda, a
Igreja declara que “as alegrias e esperanças, as tristezas e as
angústias dos homens e mulheres, sobretudo dos pobres e de todos
aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as
tristezas e angustias dos discípulos de Cristo“ (cf. GS 1).

As decisões sobre o desenvolvimento da Amazônia sempre são tomadas a
partir de fora e visam unica e exclusivamente a exploração das
riquezas naturais sem levar em conta as legítimas aspirações dos povos
desta região a uma verdadeira justiça social. Quando Paulo VI
declarava que “o desenvolvimento é o novo nome da paz“ (PP 87), não
pensava num “crescimentismo“ meramente econômico, unilateral e
excludente, mas convidava a todos os povos da terra a empenhar-se por
um mundo justo, fraterno e solidário, na perspectiva do Reino que
Jesus veio a anunciar “para que todos tenham vida“ (Jo 10,10).

Como quarenta anos atrás, a Amazônia continua sendo considerada a
“colônia“, mesmo que abranja mais da metade do território nacional.
Para a metrópole – Brasília, o sudeste e o sul do País – Amazônia é
apenas “província“, primeiro província madeireira e mineradora, depois
a última fronteira agrícola no intuito de expandir o agronegócio até
os confins deste delicado e complexo ecossistema, único em todo o
planeta. De uns anos para cá a “província“ recebeu mais um rótulo, sem
dúvida o mais desastroso, pois implicará a sua destruição programada,
haja visto o número de hidrelétricas projetadas para os próximos anos:
a Amazônia é declarada a província “energética“ do País. Sob a
alegação de gerar energia limpa se esconde a verdade de que mais
florestas sucumbirão, mais áreas, inclusive urbanas, serão inundadas,
milhares de famílias serão expulsas de suas terras ancestrais, mais
aldeias indígenas diretamente afetadas, mais lagos artificiais, podres
e mortos, produzirão gases letais e se tornarão viveiro propício para
todo tipo de pragas e geradores de doenças endêmicas.

A história da Amazônia revela que foi sempre uma minoria que lucrava
às custas da pobreza da maioria e da depredação inescrupulosa das
riquezas naturais da região, dádiva divina para os povos que aqui
vivem há milênios e os migrantes que chegaram ao longo dos séculos
passados.

Santarém 1972: Encarnação na Realidade e Evangelização Libertadora

Como já em 1972, os bispos reunidos em Santarém de 2 a 6 de julho de
2012 não detectam apenas os mecanismos perniciosos responsáveis pela
miséria dos povos e a devastação das florestas, mas os denunciam como
responsáveis de gerar “ricos cada vez mais ricos às custas e pobres
cada vez mais pobres“ (João Paulo II, Discurso inaugural de Puebla, 28
de janeiro de 1979) e de um meio-ambiente cada vez mais deteriorado. O
“lar“ (em grego “oikos“ – daí a palavra “ecologia“) que Deus criou
para todos nós não pode ser explorado até a exaustão, mas exige
cuidado, zelo, amor, também em vista das futuras gerações. Os
cientistas alertam sempre mais que a devastação da Amazônia terá
consequências irreversíveis para o clima do planeta e se torna assim
uma ameaça à vida e sobrevivência de toda a humanidade.

Em 1972 os bispos da Amazônia já identificaram graves feridas neste
mundo de selvas e águas que atingiram violentamente os povos
originários e tradicionais da região. Como 40 anos atrás, também hoje
os bispos se entendem como mensageiros dos povos da Amazônia, profetas
que vivem numa grande proximidade com Deus e ao mesmo tempo
sintonizados com os acontecimentos históricos, homens de fé que „vêm
da grande tribulação“ (Ap 7,14). Nestes nossos tempos, as feridas se
tornaram chagas abertas que perpassam e sangram a Amazônia de fora a
fora, causando cada dia mais vítimas fatais.

As prioridades da ação pastoral e evangelizadora apontadas em 1972
continuam atualíssimas. Até hoje uma formação adequada à essa região
para ministros ordenados, mas também para leigas e leigos que dirigem
as comunidades, é fundamental. Importa encarnar a Igreja no chão
concreto da Amazônia. Quem exerce um ministério, ordenado ou não,
participa do pastoreio de Jesus e está a serviço de seus irmãos e
irmãs e quer exercê-lo na simplicidade do lava-pés e numa proximidade
fraterna ao Povo de Deus.

As Comunidades Cristãs ou Eclesiais de Base tão recomendadas no
Documento Santarém 1972 são expressão de uma Igreja viva e
comprometida. Como os bispos já afirmaram em Manaus (2007), elas
constituem um dom especial que Deus concedeu à Igreja na Amazônia. São
obra do Espírito Santo. O que o Documento de Aparecida afirma,
aplica-se de modo especial à Amazônia. As CEBs, diz o documento, “têm
sido escolas que têm ajudado a formar cristãos comprometidos com sua
fé, discípulos e missionários do Senhor, como o testemunha a entrega
generosa, até derramar o sangue, de muitos de seus membros” (DAp 178).
As CEB’s são também uma resposta válida e empolgante para o mundo
urbano como resposta ao individualismo e a superficialidade do
consumismo. Nas CEBs se vive a dimensão samaritana da compaixão ativa
e interajuda, de um coração e mãos abertas para quem sofre ou passa
necessidade, mas também a dimensão profética de anunciar continuamente
a utopia do Reino e, ao mesmo tempo, denunciar todos os mecanismos e
estruturas que impedem a chegada do Reino. É exatamente esta dimensão
profética que gerou as e os mártires da Amazônia. As CEBs
constituem-se em família das famílias onde todos se conhecem e querem
bem, mas são também centros de oração e meditação da Palavra de Deus
para nutrir a mística profunda da vivência na proximidade de Deus. Ele
mesmo se revelou como um Deus-conosco e assegurou aos profetas,
apóstolos, discípulas e discípulos: “Eu estarei contigo“ (cf. Ex 3,14;
Js 1,9; Jr 1,19; At 18,9-10). Afinal “se Deus está conosco, quem será
contra nós“ (Rom 8,31).

Santarém 1972 assume a questão indígena como causa de toda a Igreja na
Amazônia. Lembra que no mesmo ano por iniciativa dos bispos, mormente
dos da Amazônia, foi fundado o Conselho Indigenista Missionário –
Cimi.

Os bispos talvez não imaginavam quarenta anos atrás o imenso apoio que
sua decisão significava aos direitos e à sobrevivência de dezenas de
povos indígenas na região amazônica que, sem o empenho intransigente
da Igreja, teriam desaparecido. A presença solidária e o apoio
incondicional à luta por seus direitos foi fundamental para que hoje a
maioria dos povos indígenas da região tenha suas terras demarcadas.
Foi também de enorme importância gerar uma consciência de respeito e
valorização dos povos, suas culturas e seus projetos de “Bem Viver“.
Dezenas de povos saíram do silêncio em que foram forçados a se ocultar
para sobreviver. Ressurgiram das cinzas e estão lutando pelos seus
direitos e suas terras. Alem disso a atuação corajosa dos
missionários, selando seu compromisso através do sangue derramado pela
vida desses povos, propiciou o surgimento de articulações e
organizações dos povos indígenas, essenciais para a conquista de seus
direitos e sua autonomia.

Os riscos de extermínio de vários grupos indígenas em estado de
isolamento voluntário, exige um renovado compromisso com a
sobrevivência de milhares de vidas e povos ameaçados de extinção.

Na perseverança salvareis vossas vidas (Lc 21,19)

Deparamo-nos hoje com uma verdadeira enxurrada de grandes projetos que
os Governos querem implantar, seguindo a estratégia do “fato
consumado“. Não há discussão, nem consulta popular que merecesse este
nome. Decide-se e executa-se. Oponentes são criminalizados ou taxados
de inimigos do progresso. Também os ribeirinhos, seringueiros,
quilombolas, e outros povos tradicionais sofrem pela falta de
reconhecimento suas terras.

A ética na política prometida à nação e esperada pelo povo brasileiro
cedeu lugar a uma sequencia ininterrupta de escândalos de corrupção em
todos os níveis governamentais.

Somado a estes desafios nos deparamos com a emergência do fenômeno
urbano, com o inchaço nas periferias das grandes cidade, exploração
sexual, tráfico de pessoas e de drogas, violência. Em vez de
investimentos em políticas públicas de saneamento básico, saúde,
educação e segurança, o Estado prioriza políticas compensatórias,
apoia e incentiva o grande capital, investe na construção de estádios
monumentais e outras obras faraônicas.

“Podem roubar-nos tudo, menos a esperança” (D. Pedro Casaldáliga). No
caminho de “Santarém”, novamente nos lançamos nas estradas e rios, nas
aldeias e quilombos, nos interiores e periferias das cidades, nos
grandes centros urbanos desta imensa Amazônia, abraçando a Missão que
nos foi confiada, comprometidos com toda a criação e na busca de
sermos autênticas comunidades de fé alimentadas pela Palavra e pela
Eucaristia. Nesta hora da história o nosso coração às vezes, se
angustia por causa de tantas dificuldades que nos desafiam,
aparentemente insuperáveis; no entanto, continuamos a ser chamados e
enviados como missionários e profetas para alimentar a esperança, como
âncora firme e segura (cf Hb 6,19), de um mundo novo, inaugurado por
Jesus Cristo Crucificado e Ressuscitado..